17 de out. de 2011

O Mito da “Democracia Racial”


Seminário 3º B:
FERNANDES, Florestan. 1964. mito da democracia racial. A integração do negro à sociedade de classes. São Paulo, Universidade de São Paulo. Capítulo referente ao mito da democracia racial. 


Brasil, 22 de abril de 1500: Pedro Álvares Cabral e sua expedição chegam à, até então, desconhecida terra ocidental. Habitada por nativos que nunca tiveram contato com o homem branco anteriormente, o Brasil viu o “seu povo” sofrer intensas mudanças com o passar dos séculos. O estrangeiro se viu superior e quis impor sua cultura, seus hábitos, sua religião, seu modo de ser. Os nativos, de importância semelhante ou até maior, sofreram com o processo covarde de imposição dos costumes europeus, que com armas e instrumentos de guerra mais avançados, dizimaram nações indígenas inteiras.

Esse já seria um importante assunto de estudo e profunda análise, caso a população indígena nacional não fosse reduzida a 1% do total, sofrendo todo tipo de preconceito e exclusão social.

No entanto, houve um processo ainda mais absurdo que vigorou até 1889 no país: a escravidão. No processo de expansão territorial em busca de matéria-prima para suas manufaturas comerciais e aumento de seu poderio, a Europa invadiu e dominou territórios na América, Ásia e África e impôs, na grande maioria destas áreas, o seu estilo de vida. Na América e na Ásia, encontrou produtos de grande valor comercial: especiarias, ópio, pau-brasil, ouro e prata; instituindo posteriormente a plantação de cana-de-açúcar, o algodão e outras commodities de assaz importância para suas atividades.

Já na África, os europeus viram em grande parte de sua população, a mão-de-obra necessária para a extração de tais produtos dentro de suas colônias. Até este momento, não há problemas, pois há uma relação semelhante dentro da DIT (Divisão Internacional do Trabalho), em que cada nação tem o seu papel dentro do processo produtivo mundial.

O grande absurdo foi o modo como essa mão-de-obra foi instituída: o regime de exploração a que os africanos foram submetidos dentro das colônias. No Brasil, essa exploração ocorreu, principalmente, nas lavouras de cana-de-açúcar, dentro dos engenhos, onde negros trabalhavam forçadamente, de modo compulsório, sem receber qualquer tipo de salário ou benefício. Castigos eram constantes e sua cultura não podia ser manifestada de forma alguma: seus deuses eram cultuados com imagens da religião católica, ou seja, precisavam camuflar qualquer expressão de suas tradições e hábitos.

Essa relação de trabalho que perdurou até 1888, ano da promulgação da Lei Áurea, que acabou com a escravidão no país (último a ter tal regime abolido), trouxe reflexos que estão presentes até hoje na sociedade brasileira. Há a manutenção de padrões de relações raciais construídos durante a época da escravidão e do domínio dos senhores de engenho, que foram e ainda são extremamente nocivos e prejudiciais aos “homens de cor”, no que se refere às consequências nas áreas sociais, econômicas e políticas. Ainda se busca uma igualdade sócio-racial. Mas para que isso ocorra, é preciso se libertar das ideologias vigentes nos tempos de escravidão.

É importante afirmar que essa igualdade ainda não foi estabelecida devido a ambos os lados, não somente devido ao “homem branco”. Os “homens de cor”, por privações ou por falta de uma organização bem estruturada, também não conseguiram ascender a melhores condições sociais e econômicas. Em momento algum o negro chegou a ameaçar o “homem branco” na estrutura de poder da sociedade. Talvez também seja por isso que não se formaram barreiras com o propósito de impedir esta ascensão do negro, ou seja, o branco não precisou impor qualquer tipo de resistência a uma possível melhoria das condições do negro no país. Foi essa omissão do homem branco que redundou na perpetuação da situação do negro.

Ao mesmo tempo em que o branco não via a necessidade de competir os recém-libertos, o negro se via acomodado socialmente e não encontrava motivação para concorrer com o branco. Por quase cinquenta anos que essa ideologia racial permaneceu inalterada, conflitando com as bases sociais, econômicas, culturais, jurídicas e políticas de uma sociedade multirracial, de estrutura ainda em montagem.

Ainda assim, as elites não viam com bons olhos as agitações em torno do “problema negro”, que eclodiam separadamente e, se ganhassem força, poderiam se transformar em um profundo conflito racial. Era preciso modernizar as atitudes e os comportamentos dos dois lados, pois incentivar a luta dos negros por uma suposta igualdade naquele momento seria prejudicial ao próprio negro e quebraria a paz social, ou seja, oferecer ao negro a oportunidade de brigar por direitos iguais naquele momento faria com que o branco entrasse em condições de luta muito mais favoráveis.

O início da República e da “democracia” mostrava um sistema que suavizava os conflitos ideológicos entre brancos e negros. O negro não conseguia entrar no ciclo competitivo capitalista e continuava a sofrer os mesmos problemas que durante o período da escravidão. Ao contrário do que parece, nada disso ocorria com o propósito de prejudicar o negro. A “defesa da paz social” que se pretendia pôr em prática não proscrevia o negro da vida social normal. Na verdade, ela estava associada a um velho ideal de preparar completamente o negro e o mulato para seus novos deveres profissionais e cívicos, tornando-se prontos para aproveitar sua liberdade.

Na busca de um futuro perfeito e igual, acorrentava-se o “homem de cor” ao seu passado: condição subhumana de existência e uma disfarçada servidão eterna. Assim, construiu-se um dos grandes mitos da história do nosso país: o mito da democracia racial brasileira. Ele foi crescendo com a desculpa de que o antigo escravo agora é suave, doce e cristãmente humano. Trazia a ideia de que a igualdade perante a Lei só iria fortalecer a hegemonia do homem branco. Essa fantasia permitiu que se fechasse os olhos para o drama coletivo da população negra no país.

O mito atribuía as dificuldades sofridas pelos negros à sua própria incapacidade e irresponsabilidade. Desta forma, o homem branco não tinha qualquer responsabilidade pela condição dramática do negro na sociedade. Era forjada a ideia de consciência da realidade racial brasileira. Foi difundida a ideia de o negro não tinha problemas no Brasil, que não havia diferenças entre branco e negro, que as oportunidades eram iguais para todos, sendo que nunca existiu nenhum tipo de problema de justiça social com o negro. A miséria, prostituição edesorganização da família, predominantes entre a população negra, eram tratados como efeitos residuais e transitórios do período da escravidão.

Esta situação da parcela negra da população brasileira permanecia do mesmo jeito porque qualquer iniciativa autêntica de proteger a ascensão igualitária do negro e do mulato esbarrava com fortes dissensões e oposições arraigadas. Os abolicionistas não poderiam querer que os negros, após tantos anos de humilhação e exploração, tivessem uma paixão repentina pelos seus antigos senhores. Diversos exemplos mostram que o homem branco não tinha problemas em ajudar o negro, mas repudiava qualquer foco de manifestação mais generalizada.

O mito da “democracia racial” acabou sendo criado e manipulado com as circunstâncias do dia-a-dia. Uma manifestação diferente só ocorreria caso a “raça dominante” fosse a negra, permitindo-lhes possuir uma autonomia social para explorar o poder e tornar todo o sistema vigente favorável aos seus interesses. A falsa sensação de bem estar e acomodação social só trouxe malefícios aos negros, que não encontrava forças para lutar por melhores condições de vida. A justiça ficou delegada aos homens brancos, que julgavam o que convinha ou não aos “homens de cor” realizar.

Ocorreu uma acomodação mútua de interesses paralelos. As camadas dominantes continuaram à frente do poder, enquanto o restante buscava ainda um lugar ao sol, na busca de se garantir social e financeiramente. O mito se transformou numa formidável barreira ao progresso e autonomia do negro, ou seja, impediu a verdadeira democracia racial dentro do Brasil.

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